INTRODUÇÃO
Este artigo analisa quem se enquadra no conceito de superendividado, explica como a lei pode ajudar a população a sair desse estado e aponta seus limites, destrinchando casos reais de pessoas que recorreram a esse auxílio legal. A Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181/2021) foi criada e sancionada em 1º de julho de 2021, com o objetivo de auxiliar os superendividados na negociação de suas dívidas e concessão de crédito, garantindo condições mínimas para a subsistência (valor indispensável para assegurar a dignidade humana) do devedor e de seus dependentes.
QUEM SE ENCAIXA NO CONCEITO DE SUPERENDIVIDADO?
A Lei do superendividamento foi criada no contexto da pandemia do vírus da covid 19, onde diversas famílias brasileiras estavam em uma situação de crise financeira, com o objetivo de proteger e oferecer uma saída legal a consumidores que acumularam dívidas além de sua capacidade de pagamento, preservando seu mínimo existencial.
Entretanto, há uma série de critérios legais, visto que no o artigo 54-A do Código de Defesa do Consumidor (CDC), resguarda tais direitos para devedores (somente pessoas físicas) de boa-fé, que tinham a intenção de pagar, cujas dívidas não tenham sido contraídas por fraude nem decorram da aquisição de artigos de luxo, como carro de alto padrão, imóvel de luxo ou smartphones de valor excessivo.
Ou seja, a lei auxilia apenas quem tenta quitar seus débitos de consumo, mas não consegue fazê-lo sem comprometer o valor mínimo para sua sobrevivência.
Para esclarecer, é preciso diferenciar o inadimplente do superendividado:
- Inadimplente: possui uma ou mais dívidas atrasadas, mas consegue quitá-las sem comprometer o mínimo existencial.
- Superendividado: não tem condições de pagar suas dívidas sem afetar o mínimo existencial.
EM QUAIS TIPOS DE DÍVIDAS ESTA LEI AUXILIA?
A Lei do Superendividamento tem um alcance significativo, promovendo a repactuação de dívidas para auxílio do devedor, que afetam o sustento do indivíduo e da sua família.
No artigo 54-A, §2º é destacado que “As dívidas abrangem quaisquer compromissos financeiros decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.”
Um ponto muito forte na jurisprudência é a limitação dos descontos de empréstimos (especialmente consignados) em conta-corrente. A regra consolidada é que o total de descontos não pode ultrapassar 30% da remuneração líquida do devedor, a fim de garantir justamente o mínimo existencial. A Lei do Superendividamento veio reforçar esse princípio. A lei promove a negociação e concessão de crédito para dívidas oriundas, por exemplo, de:
- Operações de crédito;
- Compras a prazo;
- Serviços de prestação continuada;
- Financiamento de bens de uso próprio, como moradia e automóveis;
- Serviços essenciais (água, gás, energia, internet);
- Cartões de crédito;
- Empréstimos bancários.
Dívidas que a lei não cobre:
- Impostos e taxas públicas (tributos);
- Pensão alimentícia;
- Multas criminais ou trabalhistas;
- Empréstimos para atividades empresariais ou investimentos;
- Aquisição de bens de luxo de alto valor (ex.: automóveis de luxo).
COMO INICIA-SE O PROCESSO PARA A REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS
É imprescindível destacar não apenas a relevância, mas também o procedimento de instauração da repactuação de dívidas sob a égide da Lei do Superendividamento (nº 14.181/2021). O artigo 104-A do Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabelece que, a requerimento do consumidor pessoa natural superendividado, o juiz poderá instaurar o processo de repactuação com vistas à realização de audiência conciliatória. Nela, o consumidor apresentará uma proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos, preservando-se o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.
Este mecanismo legal, delineado no Capítulo V do CDC, visa a uma solução global e organizada para o concurso de credores. Caracteriza-se pela apresentação, perante o juízo, da relação completa de dívidas do consumidor que se encontra em situação de impossibilidade de arcar com seus compromissos sem comprometer o mínimo existencial. O passo inaugural é a audiência conciliatória global, coordenada pelo magistrado, com o fim de negociar um Plano de Pagamento Judicialmente Coercitivo, objetivando retirar o consumidor da insolvência e resguardar sua dignidade.
Jurisprudência: A Tutela do Mínimo Existencial
Na aplicação prática dessa sistemática, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) firmou um importante precedente em agosto de 2022 (Acórdão 1607830). A 3ª Turma Cível estabeleceu que, mesmo na fase inicial do processo de repactuação, a tutela de urgência pode ser concedida para determinar a suspensão parcial dos descontos em folha e conta-corrente. Essa decisão foi crucial ao diferenciar a repactuação das ações revisionais comuns, preconizando que o foco central não é a legalidade intrínseca dos descontos, mas sim a situação vulnerável do consumidor e a urgente necessidade de preservar seu mínimo existencial.
O QUE ACONTECE CASO NÃO HAJA UM ACORDO ENTRE DEVEDOR E CREDOR?
Algo muito recorrente nestes processos é que não haja um acordo entre as partes para a repactuação de dívidas com o intuito de proteger o mínimo existencial do consumidor. Sobre isto, o artigo 104- B do superendividamento dispõe:Se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado. Ou seja, na hipótese de não haver acordo com todos os credores, ou no caso de um dos credores se recusar injustificadamente a participar da conciliação, o juiz dará início à fase de judicialização coercitiva. Neste momento, o magistrado, a pedido do consumidor, instaurará um processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos, determinando o plano de pagamento forçado. Este plano judicial compulsório garantirá o pagamento das dívidas, com o prazo máximo de cinco anos, assegurando o valor mínimo existencial do devedor e preservando as garantias originais dos credores, como previsto em lei.
Jurisprudência: Na sentença do TJSP publicada em 02/09/2025, há uma forte crítica do juiz para com o credor pois este estava a todo momento agindo de má-fé quando havia uma tentativa de negociação a fim de proteger o mínimo existencial e ainda solicitou uma ação de execução para forçar o pagamento do devedor e satisfazer o credor. A crítica da sentença baseia-se nas práticas abusivas do credor e da recusa deste em negociar de forma que fosse realmente viável para preservar a subsistência do devedor, destacando que a lei do superendividamento, processo de repactuação busca a conciliação e a solução negociada, tendo como prioridade a preservação do mínimo existencial do consumidor.
Tendo em vista isto, é de imprescindível importância salientar estratégia de defesa padrão de credores em ações de superendividamento:
- Alegação Processual: Dizer que a ação é precoce (ausência de interesse de agir).
- Alegação de Mérito: Dizer que a dívida específica com o banco não é a causa do problema e, portanto, não deve ser repactuada.
Ambos os argumentos, quando confrontados com o objetivo da Lei 14.181/2021 (que é a repactuação global e a proteção do mínimo existencial), geralmente são rejeitados pelo juiz, desde que a situação de superendividamento da consumidora esteja comprovada no processo.
COMO A LEI PODE AJUDAR A POPULAÇÃO?
A lei do superendividamento representa um grande marco no Código de Defesa do consumidor ao enxergar o endividamento excessivo não só como um problema individual, mas sim como uma adversidade socioeconômica, com o objetivo mitigar o superendividamento no Brasil, que tem como principais causas a concessão irresponsável de crédito, publicidade enganosa ou abusiva, desemprego e crises econômicas e a falta de educação financeira.
Neste diapasão, o Código do Consumidor apresentou duas principais modificações para prevenir e tratar o superendividamento:
Prevenção: O Art. 54-B determina que, antes de vender a prazo ou conceder empréstimo, o fornecedor de crédito deve apresentar informações claras para evitar contratos abusivos.
Tratamento: Conforme o Art. 104-A, o consumidor superendividado pode ingressar em juízo solicitando repactuação das dívidas e concessão de crédito, de modo que seu mínimo existencial não seja comprometido, apresentando um plano de pagamento em até cinco anos.
CONCLUSÃO
A Lei do Superendividamento representa um marco na proteção do consumidor brasileiro. Ao permitir a repactuação de dívidas e exigir transparência das instituições financeiras, oferece um caminho para que pessoas em crise financeira recuperem sua dignidade e retomem o controle de suas vidas.
No entanto, sua efetividade depende de ampla divulgação, estrutura judiciária ágil e maior investimento em educação financeira. Casos como os de Maria, João e Dona Conceição mostram que, quando bem aplicada, a lei transforma histórias de desespero em recomeços sustentáveis.
Luan Ícaro – Estagiário de Direito
Supervisão: Fernando Medeiros – OAB/PB 19.597
Fontes